No princípio, havia apenas o mundo íntimo: eu e os dois amores que me criaram. Reinava eu, como reina uma estrela numa noite sem nuvens.
O tempo deles era um relógio cujo ponteiro girava apenas em torno de mim.
Depois... veio o silêncio criativo da infância. Inventei um amigo que não existia. Um amigo imaginário.
Minha mãe, prática como sempre, confundiu a imaginação com solidão, como se a fantasia fosse falta, e não excesso de ser.
E decidiu: “É hora de uma irmã.”
Aceitei sem ciúmes.
Mas o tempo, esse velho fingidor, alongou os meses como se fossem desertos.
Esperei.
E no dia 24 de maio, minha irmã nasceu. Em um dia como hoje.
Não me levaram ao hospital.
Fiquei com um dinossauro de colorir.
Ridícula distração!
Eu, que ansiava ver o rosto da nova intrusa, ou futura cúmplice, (ainda não a conhecia para afirmar qual seria) fui distraída com lápis de cor e dinossauros.
Mas calei, pois percebi: naquele instante, o mundo não girava em torno de mim.
(E isso, confesso, foi a minha primeira lição de filosofia.)
Quando olhei pra ela, pela primeira vez, eu só sabia sentir felicidade. Eu pensei enquanto olhava pra ela:
“Se prepara, minha irmã. Nossos pais são um pouco loucos, mas são maravilhosos. E agora você tem a mim.”
E me apaixonei!
Virei sua guardiã.
Reclamava dos adultos que apertavam suas bochechas: “Ela não gosta.”
Corrigia brinquedos: “Ela prefere este.”
Minha irmã, minha obra-prima.
O primeiro projeto foi ensiná-la a andar: girava em torno do berço como se traçasse órbitas de afeto. E ela, como um cometa obediente ao sol, andou antes do tempo previsto.
Depois, ensinei a falar.
Meu nome virou “Lelela”, e nunca mais fui apenas “Daniella”.
E sua primeira palavra foi “mamãe”, salvando-me da sutil insatisfação da minha própria mãe por eu ter dito “papai” primeiro.
A ousadia cresceu comigo.
Quis ensiná-la a ler, porque amar também é desejar que o outro acenda os olhos com letras e ideias.
E ela lia.
E sorria com aqueles olhos azuis que pareciam dizer: “Estou entendendo o mundo. Obrigada.”
Ela aprendeu em meses o que me tomara anos.
Seria eu boa mestra? Ou ela era puro gênio?
Talvez ambos, ou talvez o amor ensine melhor que os livros.
Quando comecei a estudar matemática, quis ensiná-la também.
Alguém me perguntou: “Pra quê?”
Respondi: “Porque pra ela vai ser fácil.”
E foi.
Como tudo o que se faz com doçura.
Aos sete anos, ela começou a frequentar o fórum de justiça do Rio de Janeiro.
Lia os processos do meu pai (ele era o autor) como quem decifrava contos de fada do mundo adulto.
Meu pai, homem de convicções firmes, logo declarou: “Você não fará medicina, fará direito.”
Renata passaria em qualquer curso de medicina com os pés nas costas. Mas meu pai insistiu no Direito.
E, como sempre, ele pressentiu o acerto.
Hoje, Renata é aquilo que eu sonhava ser: firme, sábia, compassiva.
Se antes eu a ensinava letras, hoje ela me ensina silêncios.
Me acalma.
Me orienta.
Me sustenta nos momentos em que a força me abandona.
Quando meu pai ficou doente e o caos tomou nossa casa, ela se ergueu como se o mundo lhe coubesse nas mãos.
E eu a olhava, com olhos já cansados, pensando:
“Fui eu quem a ensinou a andar. Mas agora, é ela quem me conduz.”
Renata, minha irmã,
meu primeiro amor à primeira vista,
minha melhor escolha não feita.
Obrigada por ter vindo.
Obrigada, pai e mãe, por terem confundido imaginação com solidão.
Tenha um feliz aniversário, tão feliz, quanto foi a nossa infância.
E quanto ao meu amigo imaginário?
Ah…
Quando Renata chegou, ele foi embora para o Japão.
Nunca mais voltou.